segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Colaboração dos juristas Souto Maior e Alessandro da Silva ao jornal especial do Sintusp

O combate aos atos anti-sindicais no ordenamento jurídico brasileiro


Jorge Luiz Souto Maior(*)
Alessandro da Silva(**)


A democracia é uma instituição tão antiga quanto maltratada. É fácil preconizar-se democrata. É fácil atacar todo tipo de autoritarismo. Difícil, no entanto, possibilitar o efetivo exercício da democracia. Esta exige o convívio com a liberdade de manifestação e com a defesa pública de interesses determinados.

Mas, em termos de relações de trabalho, por exemplo, a democracia está por ser construída. Do ponto de vista histórico, têm sido enormes as dificuldades dos trabalhadores para se constituírem como classe social e para defenderem os seus interesses.

Para se ter uma idéia, na França, no auge da formação do Estado Liberal, cuja ideologia era a defesa da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, foi editada a famosa Lei Le Chapelier, de 14 de junho de 1791, que proibiu todas as formas de associação de trabalhadores (sindicatos) e as greves, sendo revogada somente em 25 de maio de 1864.

Mesmo na Inglaterra, berço dos movimentos operários, a greve só deixou de ser considerada um delito em 1825.

No Brasil, o Código Penal de 1890 arrolava dentre os crimes contra a liberdade de trabalho a associação operária e a paralisação do trabalho visando aumento de salário[1]:

Art. 206. Causar, ou provocar, cessação ou suspensão de trabalho, para impor aos operarios ou patrões augmento ou diminuição de serviço ou salario:
Pena - de prisão cellular por um a três mezes.
§ 1º Si para esse fim se colligarem os interessados:
Pena - aos chefes ou cabeças da colligação, de prisão cellular por dous a seis mezes.
§ 2º Si usarem de violencia:
Pena - de prisão cellular por seis mezes a um anno, além das mais em que incorrerem pela violencia.

A Constituição Federal de 1937 foi a primeira a fazer previsão expressa à greve, sendo que seu art. 139 – que criava a Justiça do Trabalho – preconizava: “a greve e o lock-out são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”.
O art. 158 da Constituição Federal de 1946, avançando a respeito do tema, estabeleceu que “é reconhecido o direito de greve, cujo exercício a Lei regulará”.
A Constituição Federal de 1967 manteve a greve como direito, mas a proibiu nos serviços públicos e atividades essenciais definidas em lei.
Por fim, o art. 9º da Carta Política de 1988 dispôs que:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

E, garantiu aos servidores públicos, igual direito (incisos VI e VII, do art. 37):

VI - é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical;
VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).


Visando avançar, concretamente, na matéria, diante da notória falência democrática que representa obstáculo quase intransponível para o efetivo exercício da atividade sindical, nossa legislação considerou anti-sindicais e, como tais, ilícitos, os atos do empregador que visem a impedir ou limitar o exercício da greve.
Nesse tipo se enquadram as represálias levadas a cabo pelo empregador contra empregado que participou de greve, conforme esclarece Raimundo Simão de Melo:

Essas represálias podem consistir em atos discriminatórios, em punições (advertências, suspensões, demissões com ou sem justa causa), além de outros atos prejudiciais ao empregado, como alijamento de promoções, perseguições, assédio moral, etc.
Tais atos são ilegais, portanto considerados como atos anti-sindicais, quando praticados pelos trabalhadores em greve lícita. É por esse motivo que atentam contra a liberdade sindical de organização e de defesa dos interesses dos trabalhadores[2].

A Convenção 98 da OIT, que trata da liberdade sindical, estabelece a necessidade proteção do empregado contra atos discriminatórios decorrentes da atividade sindical:
Artigo 1
1. Os trabalhadores gozarão de adequada proteção contra atos de discriminação com relação a seu emprego.
2. Essa proteção aplicar-se-á especialmente a atos que visem:
a) sujeitar o emprego de um trabalhador à condição de que não se filie a um sindicato ou deixe de ser membro de um sindicato;
b) causar a demissão de um trabalhador ou prejudicá-lo de outra maneira por sua filiação a um sindicato ou por sua participação em atividades sindicais fora das horas de trabalho ou, com o consentimento do empregador, durante o horário de trabalho. (grifamos)

Ocorre que nossa legislação ordinária não estabeleceu quais os efeitos dos atos anti-sindicais e discriminatórios praticados pelo empregador.

Em tais circunstâncias, estamos diante de uma lacuna, isto é, de uma incompletude insatisfatória no sistema, nas palavras de Karl Engish[3]. Assim, uma norma que se faz necessária não foi expressamente tratada pela lei.

Mas, o Direito, como se sabe, não se faz apenas de artigos de leis. Identificada a lacuna sobre tema de relevância social abre-se a porta para a incidência dos mecanismos jurídicos de integração do ordenamento, como preconiza o 4º., da Lei de Introdução do Código Civil: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

No âmbito trabalhista, o artigo 8º da CLT, igualmente prevê que a analogia é fonte do Direito. A analogia, segundo lição clássica, consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante[4]. Para tanto, é necessário que exista uma semelhança relevante entre ambas as situações comparadas, o que autoriza a aplicação analógica da norma, conforme esclarece Norberto Bobbio:

Para que se possa tirar a conclusão, quer dizer, para fazer a atribuição ao caso não regulamentado das mesmas conseqüências jurídicas atribuídas ao caso regulamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, é preciso ascender dos dois casos a uma qualidade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras conseqüências[5].

Ora, a Lei 9.029/95 coíbe as práticas discriminatórias para efeito de admissão ou de manutenção da relação de emprego por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade.

A conduta que a Lei 9.029/95 visa a desestimular é a discriminação e esta também se faz presente nas práticas anti-sindicais, de modo que ao empregado despedido por ter participado de movimento paredista, ou por ter se apresentado um sindicalista atuante, podem ser aplicadas as determinações do art. 4º dessa lei, in verbis:

Art. 4º O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta lei, faculta ao empregado optar entre:

I - a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais;
II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.

Não se pode esquecer, ademais, que a própria Constituição brasileira, baseada em ideais democráticos e que fixou como preceitos fundamentais, a cidadania, o valor social do trabalho e a proteção da dignidade humana, proibiu a prática de discriminações como óbice à promoção do bem de todos ou à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º.).

A greve, como expressão da liberdade, mecanismo de se fazer ouvir, para reivindicar ou defender interesses considerados relevantes para a classe trabalhadora, não pode ser alvo de represálias, de intimidações, sob pena de se negar vigência à democracia como princípio fundamental da República.

Importante perceber que o sistema capitalista de produção, por ocasião dos movimentos revolucionários de natureza socialista, viu-se profundamente abalado e a partir de então resolveu dialogar com os trabalhadores melhores condições de vida dentro do próprio modelo capitalista. Dentro desse contexto, a greve passou a ser lícita, e mais, passou a ser um instrumento importante da preservação do próprio sistema. Trabalhadores em greve querem melhores condições de trabalho e, conseqüentemente, não almejam a subversão da ordem política.

O ordenamento jurídico brasileiro, que preserva a ordem capitalista, portanto, só pode mesmo ser totalmente contrário às atitudes que visam aniquilar o diálogo entre o capital e o trabalho por meio da greve, já que as repressões ao direito sindical contrariam a própria lógica de sustentabilidade do sistema, impulsionando as atitudes revolucionárias.
A reivindicação de direitos trabalhistas e a defesa de interesses considerados importantes pelos trabalhadores por meio da greve são, por conseguinte, as essências democráticas do Estado Social dentro da lógica capitalista.

A punição de trabalhadores, por sua atuação sindical, constitui grave agressão à ordem jurídica e uma vez demonstrada (presumível em certas circunstâncias, já que os atos de discriminação nunca se auto-declaram) dá ensejo à configuração da prática de ato anti-sindical, caracterizado como crime em diversos países, incluindo o mais avesso à regulação do trabalho que são os EUA. No nosso caso, do Brasil, não se requer um dispositivo específico para este fim, visto que se trata de afronta direta à Constituição da República, como demonstrado.

Os casos que ponham em risco a liberdade sindical são, portanto, de enorme significação para a sociedade brasileira e constituem relevantes desafios para o Poder Judiciário, quando chamado a se manifestar a respeito, sendo certo que o Estado Brasileiro não pode mais se omitir quanto ao compromisso, internacionalmente assumido, de implementar política eficaz de combate aos atos anti-sindicais, segundo advertência já feita pelo Comitê de Liberdade Sindical da OIT, em 2007.
Do ponto de vista da atuação jurisdicional, os juízes do trabalho brasileiros, reunidos na 1ª. Jornada de Direito do Trabalho, realizada na sede do Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, em novembro de 2007, aprovaram, a respeito do tema, o Enunciado n. 25, com o seguinte teor:

CONDUTA ANTI-SINDICAL. PARTICIPAÇÃO EM GREVE. DISPENSA DO TRABALHADOR. A dispensa de trabalhador motivada por sua participação lícita na atividade sindical, inclusive em greve, constitui ato de discriminação anti-sindical e desafia a aplicação do art. 4º da Lei 9.029/95, devendo ser determinada a "readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas" ou "a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento" sempre corrigidas monetariamente e acrescida dos juros legais.[6]

(*) Professor da Faculdade de Direito da USP e Juiz do Trabalho na 15ª. Região – Campinas.
(**) Juiz do Trabalho na 12ª. Região – Santa Catarina.
[1] Foram mantidas as regras gramaticais da época.
[2] MELO, Raimundo Simão de. A greve no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 2006, p. 64.
[3] ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 276.
[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 169.
[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 153.
[6]. Disponível em http://www.anamatra.org.br/jornada/enunciados/enunciados_aprovados.cfm

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